16.6.06

Quem tem medo da técnica?

Pensare la Tecnica: Un secolo di incomprensioni, de Michela Nacci.

Roma-Bari, Laterza, 2000, 245 pp.

Como os intelectuais do século XX interpretaram a técnica? Esta é a pergunta básica que Michela Nacci procura responder em seu belo livro Pensare la Tecnica, cujo subtítulo já diz tudo: um século de incompreensões. Segundo a autora, esses intelectuais em geral julgaram a técnica de modo negativo, e, ao buscarem nela uma "essência", anularam as diferenças entre uma técnica e outra, isto é, fizeram das diversas técnicas a técnica.

É dessa presumida essência, de fato, que brotam as maiores incompreensões, "as definições mais arbitrárias, as acusações mais injustificadas". Caso contemplassem as técnicas de modo realista, eles teriam percebido que todo processo técnico se move dentro de limites determinados, seguindo percursos traçados no passado: inventa-se a partir do que já se tem, das regras disponíveis, dos conhecimentos acessíveis. Mas, vendo a técnica como "una e generalíssima", os intelectuais do vigésimo século puderam atribuir-lhe uma racionalidade (ou irracionalidade) própria, dotando a técnica de uma finalidade, um sentido intrínseco, que a guiaria do início ao fim.

A autora não hesita em afirmar que, "salvo poucas exceções, a filosofia deste século interpretou a técnica de modo distorcido, deformado; fez dela o demiurgo onipotente que tudo pode em toda situação. Personificou-a, demonizou-a, tornou-a cúmplice ou responsável pelos totalitarismos, pelas sociedades opressivas, pela massificação do homem e até mesmo pelo fim da civilização ocidental" — um tema, aliás, que percorreu todo o século. Essas reações demonstram que a cultura humanística não conseguiu se desenvencilhar, em relação à técnica, de "uma imagem mítica e idealizada, semelhante àquela que as crianças têm dos adultos".

Michela Nacci divide o livro em duas partes. Na primeira, analisa os itinerários da filosofia da técnica no Novecento, através de seus representantes mais expressivos. Na segunda, considera as imagens da técnica presentes em autores que não são filósofos, fornecendo, como ela própria diz, "a anatomia de um senso comum da cultura humanística sobre a técnica". Os filósofos, particularmente, representaram a técnica de cinco maneiras distintas: como autônoma em relação ao homem; como domínio, uma característica da própria modernidade (visão comum na cultura contemporânea); como oposta ao pensamento; e como totalitarismo. Hans Jonas, Ernst Jünger, Günther Anders, Oswald Spengler, Karl Jaspers, Martin Heidegger, Theodor Adorno e Max Horkheimer são alguns dos pensadores que expressam essas tendências.

Para Heidegger, por exemplo, que nunca escondeu sua repulsa e condenação à técnica, a essência desta é a imposição. Mais que fazer ou usar a técnica, o homem está no âmbito dessa imposição, sendo por ela dominado. A técnica é algo tão pouco controlável que tem pouca sintonia com os princípios democráticos. A razão disso, observa Nacci, reportando-se ao filósofo alemão, "é que na democracia sobrevive a ilusão de que a técnica é algo que está nas mãos do homem. Ao contrário, a técnica (exatamente porque não é um instrumento) é algo que o homem não domina de fato", ou seja, é "imposição". Heidegger aceitaria o nazismo, conclui a autora, porque este estava na direção de "conquistar uma relação com a essência da técnica".

Na segunda parte do livro ("Imagens da Técnica"), Nacci aborda alguns autores contemporâneos, como Serge Latouche, os "pós-modernos" Jean-François Lyotard e Gianni Vattimo (este, autor da apresentação de Pensar a Técnica) e os "teóricos críticos" Adorno e Horkheimer, da Escola de Frankfurt, particularmente aclamados em certos setores acadêmicos brasileiros por sua crítica à "indústria cultural", na famosa Dialética do Iluminismo. Nacci dedica o capítulo 9 à análise que os frankfurtianos fazem do rádio, instrumento de "domínio" por excelência, especificamente do nazismo ("a boca universal do Führer"), que transformaria a racionalidade em irracionalidade. A obra de Adorno e Horkheimer é, de fato, um clássico sobre a deformada percepção da técnica pelos intelectuais.

Entre os contemporâneos, o apocalíptico Latouche — um "especialista em Terceiro Mundo" — também é conhecido no Brasil (seu A Ocidentalização do Mundo, lançado pela Vozes, de Petrópolis, já tem várias edições), certamente por figurar entre os críticos ideológicos da globalização, tão ao gosto da cultura humanística que, amparando-se na literatura e nas artes como pretensas portadoras exclusivas dos "valores humanos", contrapõe-se hostilmente à cultura tecnocientífica. Para o intelectual francês, o domínio da natureza, através da ciência e da tecnologia, é um projeto totalitário, sendo a técnica "um instrumento poderoso na colonização de corpos e espíritos", de "padronização do imaginário".

A técnica, aliás, é a própria cultura do Ocidente: "O empreendimento colonial participa também do projeto de total domínio da natureza. À exploração marítima do século XVI sucede a exploração científica do século XVIII. Ao confisco das riquezas e das almas, segue-se o inventário enciclopédico do Cosmo". O que leva Latouche a concluir que a técnica "tornou-se um artigo de fé universal, a conseqüência concreta e a presença visível da nova divindade: a ciência" (observe-se que a condenação da técnica, em geral, acompanha a condenação da ciência. Raramente elas são vistas como distintas).

O itinerário que Michela Nacci reconstrói com precisão e clareza, além de paixão teórica, aponta para um risco permanente, já assinalado por Vattimo na apresentação do livro: a "demonização humanística da técnica", a que a cultura se entregou até hoje, ao invés de elaborar "uma proposta positiva, que compreenda critérios para fazer escolhas dentro do mundo técnico, e não apenas vias de fuga e exorcismos". É necessário, sobretudo, compreender as técnicas dentro de seus limites reais, abandonando as visões essencialistas. Tanto quanto as ciências, as técnicas nada tem a ver com finalismo. Por todos esses méritos, a obra da professora italiana (Universidade de Aquila) merece uma tradução.

Orlando Tambosi

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