15.3.06

A falência do marxismo


O texto a seguir, publicado na edição de 22 de novembro/05 do Correio Popular, de Campinas, é de Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele analisa meu livro O declínio do marxismo e a herança hegeliana (Florianópolis, UFSC, 1999), traduzido na Itália em 2001, pela Mondadori, sob o título Perché il marxismo ha fallito. Lucio Colletti e la storia di una grande illusione. Romano é autor de vários livros (Moral e ciência. A monstruosidade no século XVIII, São Paulo, Senac, 2003, entre outros), conferencista e colaborador de jornais e revistas, além de participar com freqüência em programas de debates na Globo News. Transcrevo o artigo integralmente, com meus agradecimentos ao mestre.

"Não gosto de analisar livros recentes. Prefiro esperar e ver como reagem no rarefeito ar acadêmico. Tenho comigo um belo texto de 1991. Eu o acompanhei desde bem antes. Seu autor estudou na pós-graduação da Unicamp. Aluno raro porque unia a gentileza ao cuidado acadêmico com a regras, as fontes de trabalho, etc. Estive como examinador na sua qualificação quando a pesquisa amadureceu e se transformou em doutoramento. Naqueles dias o trauma do enterro inglório da URSS era recente. Muitas pessoas que hoje se proclamam livres do marxismo e da esquerda recitavam o rosário da famosa Diamat (Dialética Materialista). Com muita coragem o jovem autor apresentou uma rigorosa análise do ideário marxista, tendo em conta o teórico Lucio Colletti. O nome do jovem, originário de Santa Catarina, é Orlando Tambosi.

O livro traça, antes de tudo, um panorama das doutrinas marxistas na Itália, em suas raizes mais fortes, como é o caso de Croce. Depois, discute os escritos fragmentários de Gramsci que permitia, ao usar noções vagas sobre a sociedade civil e o papel dos intelectuais orgânicos, atenuar a grosseria do marxismo oficial, cujos jogos entre “infra” e “super” estrutura permitiam parolar sobre tudo e de nada dar conta no mundo efetivo. Perto de Roger Garaudy (aquele mesmo que afirmava, piorando o materialismo do século 18, que o cérebro secreta o pensamento como o fígado a bilis) e de Jean Kanapa (aquele outro que delatou em Sartre tendências filo-imperialistas norte-americanas, porque o autor da Crítica da Razão Dialética ousara recusar o estupro da Tchecoeslováquia) Gramsci era um portento especulativo. Mas o colosso tinha pés de barro.

As suas fraquezas foram apontadas por Lucio Colletti. Como sempre, em se tratando de seitas, o crítico não foi ouvido. Ocorre na Itália e na Europa o debate sobre socialismo e democracia. Gramsci coqueteou com Hegel, via Croce, o que fazia do seu ideário uma receita de adesão ao “necessário encadeamento histórico”. O futuro estava garantido (como denunciou Regis Debray) o que fez do marxismo uma receita de aceitação do presente, desde que dirigido pelos gloriosos líderes do proletariado. Parêntesis: hegelianismo e aceitação do fato coincidem, o que leva aos realismos indigentes dos militantes, sempre dispostos a quebrar os ovos alheios quando se tratava de fritar o omelete da “boa história”. Não por acaso Nietzsche caçoa dessa crença : “olhem os joelhos dos hegelianos, gastos de tanto serem dobrados diante da necessidade histórica!”.

A crítica de Galvano Della Volpe, virulentamente anti-hegeliano, suscita o debate sobre os elos entre Hegel e Marx, com direito à uma visita ao museu do materialismo romântico tardio, cujo icone era Feuerbach. O exame da contradição dialética atingiu, era inevitável, a cabeça dos teóricos italianos e europeus. Sofísticos ao máximo, escapando simuladamente das denúncias kantianas sobre os paralogismos da razão, Hegel e discipulos “dialetizam” tudo, tudo engolem com sua lógica absoluta, tudo explicam. Mas tudo fica inexplicado porque a dialética foge da epistemologia. Ela opera sem limites ou regras. É delírio racional tão idiotizante quando os devaneios do metafísico.

É disso que se trata: o “herdeiro” da bela dialética não passa de metafísica selvagem, pão para toda boca pois explica a natureza e a cultura, com ajuda de meros truques como a passagem da quantidade para a qualidade e quejandos. Como a feitiçaria não escapa do mundo, em especial do político, a tal escolástica não explicou nem moveu o Estado italiano, um dos mais complexos da história moderna (quem leu Maquiavel, sabe).

Orlando Tambosi segue Lucio Colletti na desmistificação à raiva da ciência (“burguesa”…) presente no PC. As determinações kantianas ajudaram a denunciar a enfermidade pan-lógica e metafísica. E nas suas últimas páginas, ele extrai as lições de Kant, ainda na linha de Colletti. Mas o mesmo Colletti extrai de Max Weber um ensino até hoje ignorado pelos militantes e acadêmicos da chamada esquerda : “a tensão entre a esfera da ciência e a dos valores da salvação religiosa é incurável”. Os marxistas falavam em “ciência” quando faziam fervorinhos religiosos, dobravam a espinha para a raison d´État soviética. Diziam “natureza” e “realidade”, quando suas categorias eram metafísicas. No campo hegeliano original tais noções eram coerentes, visto o “idealismo objetivo” de Hegel fundamentar-se no Espirito que tem sua Epifania no Estado. Nos escritos marxistas, eram apenas e tão somente lambões especulativos, a folha de uva que escondia a nudez do infalível Partido. Dessa experiência emburrecedora, quem pensa não tem saudade. Nome do livro? O declínio do marxismo e a herança hegeliana (Editora da Universidade Federal de Santa Catarina,1999). Título muito respeitoso com um defunto que não merece velas de libra. Em italiano, o nome é claro e distinto: Perché il marxismo ha fallito
(Milano, Mondadori, 2001). Leitura obrigatória para quem deseja pensar o passado de uma ilusão.
Roberto Romano

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