3.10.17

Marxismo e dialética: uma herança fatal.

Texto de Conferência apresentada pelo autor na Universidad Três de Febrero, em Buenos Aires, na noite de 26 de setembro de 2017.


MARXISMO E DIALÉTICA: UMA HERANÇA FATAL.
(Gramsci, Della Volpe e Colletti).

Orlando Tambosi

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o amável convite do Prof. Dr. Samuel Amaral, que, além de ter lido meu livro sobre a decadência do marxismo, me localizou em Florianópolis para esta palestra com os professores do Curso de Pós-graduação em História da Universidad Nacional Tres de Febrero.

Agradeço também às autoridades departamentais, demais professores e interessados aqui presentes.

Devo esclarecer que retorno ao tema passados quase 20 anos, uma vez que o livro foi publicado em 1999 em português, com tradução italiana lançada dois anos depois. Jamais tive oportunidade de discuti-lo em minha própria universidade e, até pelo contrário, a publicação me acarretou diversas inimizades por parte de colegas das ciências sociais e humanas.

Devo esclarecer, também, que o trabalho é resultante de uma tese de doutorado defendida na Unicamp em 1995, com o título O declínio do marxismo e a herança hegeliana. Lúcio Colletti e o debate italiano (1945-1991). O título da versão italiana foi mais preciso: Perché il marxismo ha fallito. Lucio Colletti e la storia di una grande illusione.

Esclareço, ainda, que o livro não trata de uma análise econômica, mas é uma leitura filosófico-epistemológica,com incidência,  evidentemente, nos campos da política e da história, já que abordo o pensamento filosófico italiano num período amplo (do pós-guerra a 1991).

Prezados senhores, divido a minha exposição em três pontos:

  1. Gramsci e o historicismo italiano;
  2. Galvano Della Volpe e a tentativa de fundamentação de uma epistemologia materialista;
  3. Lúcio Colletti e as razões do fracasso do marxismo.

1- Gramsci e o historicismo italiano

Um dos fatos mais importantes da esfera cultural italiana no pós-fascismo, com a fundação da nova República, foi a retomada dos estudos marxistas. É então que começam a ser editados, ainda de forma esparsa, os Quaderni del carcere, de Antonio Gramsci, dentro de uma ofensiva político-cultural que daria ao então Partido Comunista Italiano (PCI) uma indiscutível hegemonia, nos decênios seguintes, no campo da cultura, que se estenderia da imprensa ao cinema, das artes visuais às cátedras universitárias.

Sob o comando de Palmiro Togliatti, o PCI se tornaria, na verdade, o grande herdeiro do historicismo de Benedetto Croce, uma herança que transparecia na própria definição gramsciana da “filosofia da práxis” como “historicismo absoluto, a mundanização, o pensamento absolutamente terrestre, um humanismo absoluto da História” (Declínio, p.22-3).

Mas o que era o historicismo para Gramsci, Togliatti e a cultura italiana?

A primeira coisa a observar é que essa questão nada tinha a ver com o historicismo alemão (de Dilthey, Rickert, Meinecke, entre outros). Este surge em polêmica com Hegel e a cultura romântica e sua visão do mundo histórico, ao passo que o “Historicismo Absoluto”, de Croce, se baseia exatamente na concepção romântica da História e na tese hegeliana de coincidência entre racional e real em todo processo histórico.

Para o historicismo alemão,  era impossível reduzir a História à Razão. Já o historicismo italiano, via Croce, afirma que a racionalidade é imanente ao desenvolvimento histórico. Como observa Pietro Rossi (Benedetto Croce e lo storicismo assoluto, de 1957), o historicismo significou, na Itália, a fidelidade a determinados pressupostos do pensamento idealista: a concepção da História como desenvolvimento do Espírito; a subsunção da Natureza à História;  e a elevação da historiografia a forma exclusiva do conhecimento (daí a identidade de filosofia e historiografia). O historicismo podia aparecer, assim, como o coroamento da filosofia moderna - uma sucessão de fases dialeticamente concatenadas que desemboca na obra de Fichte, Schelling e Hegel. Em outras palavras, ao idealismo pós-kantiano se junta a visão histórica romântica. O historicismo de inspiração idealista era O historicismo - e com isto se esquecia que o historicismo do século XX pressupunha, em verdade, a dissolução das formulações filosóficas da cultura romântica.

Resumindo, para a cultura italiana o historicismo significa sobretudo uma concepção da história - fundamentalmente de derivação hegeliana - que afirma a historicidade de todo o real, reduzindo, em consequência, todo conhecimento a conhecimento histórico. Esta é precisamente a posição crociana, indissociável de seu idealismo, que nega o caráter cognoscitivo das Ciências da Natureza - estas seriam apenas pragmáticas e utilitárias. Viriam daí também seu antipositivismo e o permanente elogio de Croce à dialética hegeliana.

“Grande bravura” - exalta-se o filósofo - “dizer não à lógica hegeliana em nome (...) ou da transcendência religiosa ou da lógica das ciências positivas ou das matemáticas, ou do sensacionismo, do empirismo, do intelectualismo, ou do dualismo, do agnosticismo” e de tantos outros semelhantes “pontos de vista inferiores” (Declínio, 26-7).

Situando num mesmo nível história, filosofia e política, o historicismo constitui, na realidade, uma das peculiaridades da cultura italiana. E é exatamente o Gramsci historicista, divulgado por Togliatti, que desponta nas décadas de 1940 e 50: o Gramsci que, nos Quaderni, mantém um diálogo à distância com Croce, sem renegar de todo o mestre. Grande parte dos jovens intelectuais, nesse período, repete um mesmo itinerário: “De Croce ao comunismo”. O PCI de Togliatti recruta persistentemente a intelectualidade cujo perfil Gramsci definira em sua teoria: “os autores de romance, de quadros, de filmes, de obras teatrais, de música, críticos de arte e de literatura, filósofos, historiadores” etc. (Declínio, 28).

Foi justamente o historicismo que permitiu ao PCI tornar-se um partido de massa; e, aos intelectuais a ele ligados, sobreviver sem grandes traumas à crise de 1956 (Relatório Kruschev e a denúncia dos crimes de Stálin). Luporini sintetiza com clareza aquele indimenticabile 1956: “No fundo, no partido italiano nós nos sentíamos como numa situação privilegiada, por sua aparente maior flexibilidade e a abertura crítica ou problemática, em relação à rigidez dos outros partidos, na área do comunismo internacional. Também isto mostrava-se ligado ao seu historicismo teórico, que parecia, em geral, tornar possível uma maior ou mais rápida historicização e, ao mesmo tempo, problematização do imediatamente acontecido (....). Mas no conjunto, hoje, à distância, as coisas me parecem muito diferentes. Parece-me que vivíamos (isto é, pensávamos e agíamos) como num intervalo (...) entre duas ortodoxias e, em última análise, entre dois dogmatismos, o stalinista e o historicista” (Declínio, 32, n).

Enfatiza o líder do PCI, num longo, mas elucidativo discurso (retrato perfeito do Gramsci historicista por ele divulgado a partir de então):

“Ele [Gramsci] compreendia que a nova cultura idealista italiana representava um passo adiante no desenvolvimento da nossa cultura nacional, como o hegelianismo havia representado um passo adiante no desenvolvimento da cultura filosófica européia em geral. Ele compreendia, portanto, que não era possível assumir uma atitude estritamente negativa em relação a esta nova corrente intelectual, mas (...) que devíamos executar (...) uma operação análoga à que Marx e Engels executaram ao seu tempo, quando, no confronto com as fórmulas hegelianas, fizeram o que eles próprios definiram como o avesso da dialética hegeliana, isto é, dos esquemas ideológicos abstratos construídos por Hegel, fizeram um guia concreto para compreender o desenvolvimento da dialética real que está nas coisas, que está no conflito de classes, que está na sociedade mesma. Ele compreendia que o historicismo idealista não estava à altura (...) de entender a realidade, exatamente porque lhe faltava esta direta compreensão da dialética que está nas coisas e que existe na própria realidade histórica, e pensava que cabia às classes operárias, aos intelectuais de vanguarda, cumprir em relação a esta corrente filosófico-cultural a mesma obra de renovação e inversão, de modo que nós, herdeiros de tudo aquilo que existe de positivo e de progressista no desenvolvimento da cultura do nosso país, pudéssemos levar adiante, sobre estas bases, também o nosso pensamento marxista”.  (P. Togliatti, Discorso su Gramsci nei giorni della liberazione, 1945).

Podemos observar aqui que o panorama traçado por Togliatti em 1945, ainda que de forma simplificada e popular, retoma as análises da filosofia de Croce que o próprio Gramsci fizera nos Quaderni. Num escrito posterior, de 1958, Togliatti fará uma síntese do que considera central na obra gramsciana (e lá vem Croce!): “a historicidade absoluta da realidade social e política”. O marxismo é definido então como “historicismo absoluto, a única doutrina capaz de guiar a compreensão de todo o movimento da História e ao domínio desse movimento por parte dos homens associados. Neste âmbito, serão resolvidos os temas da liberdade e da necessidade” (Il leninismo nel pensiero e nell’azione di A. Gramsci).

Mas era necessário fazer as contas com Croce, como já advertira o próprio Gramsci. Era necessário não só fazer um inventário da herança da filosofia clássica alemã, mas torná-la viva: “para nós, italianos, ser herdeiros da filosofia clássica alemã significa ser herdeiros da filosofia crociana, que representa o momento mundial atual da filosofia clássica alemã” (Quaderni, p. 1233-34).

O fato é que, para Gramsci, a filosofia da práxis, embora sendo uma concepção historicista da realidade, é livre “de todo resíduo de transcendência e da teologia também na sua última encarnação especulativa”; já em Croce “o historicismo idealista (...) permanece ainda na fase teológico-especulativa” (Quaderni, 1226).

Para Gramsci, Croce domesticava a dialética hegeliana dos opostos, tornando-a dialética dos distintos. Pressupõe-se “mecanicamente”, no processo dialético, que a tese seja “conservada” na antítese, para não destruir o próprio processo. Ora, a concepção de Hegel não permite tais mutilações, diz Gramsci: “na História real a antítese tende a destruir a tese, a síntese será uma superação, mas sem que se possa a priori estabelecer o que da tese será ‘conservado’ na síntese, sem que se possa a priori ‘medir’ os golpes, como num ‘ringue’ convencionalmente regulamentado”.

Para concluir este tópico, convém perguntar: como interpretar o historicismo de Gramsci? Este problema - jamais resolvido - preocupou os intelectuais comunistas já partir da publicação do Quaderni, por volta de 1948. Para Luporini, a questão essencial é a seguinte: o historicismo parecia “a única interpretação do marxismo perfeitamente adequada e correspondente à política do partido, à sua linha estratégica” (40). Afinal, eram os tempos de Togliatti, que, como se sabe, privilegiou a interpretação de Gramsci como historicista. Delineava-se aqui a polêmica anti-historicista que agitaria os intelectuais italianos por quase um decênio (de 1954 a 1962).

2. Della Volpe e a tentativa de fundamentação de uma epistemologia materialista.

A escola de Galvano Della Volpe (que não foi propriamente uma escola) despontou justamente em contraposição ao historicismo. Reuniu alunos como Mário Rossi, Nicolao Merker e Lúcio Colletti, seu principal expoente, que acabou se separando radicalmente da temática dellavolpiana em razão da dialética.

Tanto para Della Volpe quanto para Colletti, é inquestionável a relação de Gramsci com o idealismo hegeliano - filtrado pela filosofia de Croce. Para Croce e Gramsci, a natureza parece desaparecer na História, embora Gramsci se pretenda realista, absolutamente “terrestre”, não especulativo. O fato é que Gramsci atenua o componente naturalista do marxismo. Seu interesse é dirigido à objetividade histórico-social. Prevalece o lado humano, antropocêntrico. “Objetivo”, para Gramsci, “significa sempre humanamente objetivo”. “Sem o homem, que significaria a realidade do universo? Toda ciência é ligada (...) à atividade do homem. Sem a a atividade do homem, criadora de todos os valores, inclusive científicos, que seria a ‘objetividade’? Um caos, isto é, nada, o vazio” (Quaderni, 1415-1457).

Contra essa concepção se volta Galvano Della Volpe, que tentará desenvolver uma epistemologia materialista, contrária à tradição historicista e idealista. Ele reorientaria a pesquisa marxista, priorizando - ao invés dos problemas locais, provincianos, exclusivamente relativos à Itália - as questões de importância geral ainda não resolvidas. Sua obra tem abrangência vastíssima: da metodologia à política, da ética à estética.

Atenho-me aqui à epistemologia de Della Volpe. Dois temas são fundamentais para a “filosofia-ciência” por ele pretendida: a crítica do apriorismo lógico e a teoria das abstrações determinadas, isto é, científicas. Em termos de teoria do conhecimento e de epistemologia, o que Della Volpe absorve de Marx está no texto juvenil de 1843: a Crítica da filosofia hegeliana do Direito Público, que só seria publicada praticamente 100 anos depois (1949, na Itália, trad. do próprio filósofo). O que interessa a Della Volpe está justamente nesse texto: a denúncia da lógica dialética de Hegel como “misticismo lógico”; e a crítica radical da confusão entre pensamento e ser, ideia e realidade.

Isto permitiu a Della Volpe duas coisas: quebrar, romper a identidade de pensamento e ser, de modo que o pensamento fosse somente função cognoscitiva e não também a realidade. Em segundo lugar, que o elemento sensível não só é diferente do elemento lógico, mas subsiste por si (ao invés de ser um momento da Ideia) e é positivo (contra a concepção negativa ou platônica do real). (Coll., Pagine, 78-9).

Em resumo, de um lado temos a razão ou pensamento lógico; do outro, o material da experiência: reciprocamente unidos, mas com funções diferentes, num círculo indutivo-dedutivo (C-A-C): do Concreto ao Abstrato e do Abstrato ao Concreto. Isto, para Della Volpe, condensava a lógica experimental moderna.

Separando nitidamente Marx de Hegel, o pensador italiano vai dizer que Marx elaborou, desde os primeiros escritos, uma “dialética científica” da economia e das “disciplinas morais” em geral: dialética de abstrações determinadas, e não a dialética mistificada, especulativa, de abstrações indeterminadas. Fundado no princípio clássico-aristotélico de não-contradição, o método marxiano não é um método dialético no sentido hegeliano. As abstrações determinadas são contrapostas ao apriorismo lógico.

Ressalto uma vez mais: com a “dialética científica”, Marx substitui o círculo Abstrato-Concreto-Abstrato (A-C-A) da dialética idealista e suas abstrações indeterminadas pelo círculo Concreto-Abstrato-Concreto (C-A-C), que permite hipóteses. Em outras palavras, passa-se de afirmações a priori, isto é, independentes da experiência, para previsões experimentais. Somente este método pode ser chamado de científico. Assim, o método de Marx - que parte de uma crítica radical da filosofia especulativa de Hegel - estaria dentro da tradição do pensamento ocidental que, de Aristóteles a Galilei, segue os princípios das ciências experimentais modernas. (O Declínio, 69-71).

Eis, segundo Della Volpe,  o galileísmo moral de Marx, cujo método difere  do idealismo e suas hipóstases. A abstração determinada, método da ciência econômica, é também o método das “ciências filosóficas”: o pressuposto de ambas é a rejeição - materialista - do a priori. Estas ciências são, portanto, sociologia materialista.

Mas há um problema fundamental na obra dellavolpiana. Embora refutasse a dialética idealista de Hegel, o filósofo italiano supôs que poderia existir outra dialética, que ele chamou de científica. Esta devia tratar das “contradições reais” do capitalismo. Ora, não se tem notícia, até hoje, de que alguma ciência se valha da dialética. Nem de que existam “contradições reais”.

Aqui começa a crítica de Lúcio Colletti, que tinha sido discípulo e assistente de Della Volpe na universidade.

3. Lucio Colletti e as razões do fracasso do marxismo

Neste último tópico, parto de um ponto: Marx e o marxismo sempre buscaram construir uma análise científica da sociedade capitalista. O Capital, de fato, não se apresenta como obra filosófica, mas como descrição científica das “leis do movimento” do modo de produção capitalista, leis que devem ser tratadas com a mesma objetividade com que o físico trata as “leis da natureza”. No entanto, O Capital é, ao mesmo tempo, obra dialética, como já diz seu subtítulo (Crítica da economia política). Isto significa que a luta de classes e os conflitos de interesse são ali interpretados não como oposições, mas como contradições do capitalismo. A contradição, portanto, é objetiva, real, isto é, a realidade é autocontraditória.

Ocorre que não se faz ciência com dialética. O método dialético, pelo menos na acepção moderna, só funciona dentro do sistema idealista de Hegel, para o qual - lembremos novamente - o Real é o Racional, e tudo se resolve na Ideia. Em poucas palavras, a assunção da dialética pelo marxismo revelou-se uma herança fatal para seu projeto científico. Assumir a dialética, como se verá, implica assumir também uma visão finalística da História, ou seja, conceber a História como curso que tende a uma meta prefigurada, a um ponto de chegada fixado a priori. O método dialético afasta o marxismo da ciência, enredando-o no nebuloso campo da filosofia da história.

O problema é que o marxismo fala continuamente em contradições tanto na natureza quanto na sociedade. Ora, a afirmação de que a realidade é intrinsecamente contraditória implica: 1) a rejeição do princípio clássico-aristotélico de não-contradição, fundamental ao conhecimento científico e ao materialismo (ou, melhor dizendo, realismo); 2) a suposição de que somente a dialética, isto é, a lógica da contradição, é adequada ao entendimento dessa realidade contraditória.

Em favor de sua tese de que não existem contradições reais, ou seja, de que a realidade não é autocontraditória, Colletti nomeia, além de Kant e de Trendelenburg, N. Hartmann e alguns lógicos contemporâneos, como K. Ajdukiewicz e I. Copi

Hartmann: “A contradição pertence, essencialmente, à esfera dos pensamentos e dos conceitos. Para ‘contradizer’ é preciso ‘dizer’. Conceitos e juízos podem contradizer-se (....). Mas as coisas, os acontecimentos, as relações reais - em rigor - não o podem. (....) O que se chama, muito impropriamente, contradição na vida e na realidade, não é absolutamente uma contradição, mas (...) um conflito. As forças, as potências, as tendências, as leis heterogêneas chocam-se violentamente em muitos, senão em todos os campos da realidade. (...). Mas isso não se parece em nada com a contradição, porque o conflito não opõe jamais A e não-A, isto é, um termo positivo a um termo negativo: opõe, isto sim, sempre um positivo a outro positivo. Em termos de lógica, esta relação é uma relação de contrários, em vez de contraditórios”. (Declínio, 216-7).

Copi, por sua vez, em sua conhecida Introdução à lógica, cita alguns exemplos: “O proprietário privado de uma grande fábrica, que requer milhares de operários que trabalham em conjunto para o seu funcionamento, pode opor-se ao sindicato e ser, por seu turno, combatido por este; (...) mas nem o proprietário nem o sindicato são negação ou o contraditório do outro.” Assim como Kant e Hartmann, portanto, também Copi considera a contradição somente lógica. Na realidade (natural ou social) só existem conflitos, oposições.

Por último, cito também Ajdukiewicz, para o qual “o princípio de contradição exclui que duas proposições contraditórias-opostas possam ser verdadeiras simultaneamente. Com isso, o princípio exclui que na realidade possam subsistir estados-de-coisas contraditórios, e que, portanto, algo seja assim e ao mesmo tempo não seja assim”. Exemplos: “A relação de ação e reação, de efeito e contra-efeito, não é igual à relação entre ser e não-ser de uma situação de fato, entre ser e não-ser de alguma coisa; a reação não é a mesma coisa que o não-ser da ação, e o contra-efeito não é a mesma coisa que o não-ser do efeito; ao contrário: se a ação ou o efeito é uma força, também a reação ou o contra-efeito é uma força e não simplesmente o não-ser dessa força”. (Declínio, 218).

Compreende-se, assim, a árdua tarefa que o marxismo se impôs: a vã tentativa de unir materialismo e dialética, dois princípios incomponíveis e inconciliáveis. Dito de outro modo, Marx e o marxismo se pretendem materialistas, mas seguem o método idealista de Hegel, para quem todas as coisas são contraditórias em si mesmas. Daí a necessidade dessa nova lógica, que Hegel tanto se orgulha de haver criado ao se desvencilhar da lógica clássica, prisioneira do princípio de não-contradição.

Não é o caso, aqui, de entrar profundamente na lógica hegeliana. Para o nosso tema, é suficiente observar que a posição de Hegel significa um retrocesso em relação a Kant, que já havia percebido a diferença entre oposição real e oposição lógica. A diferença entre os dois tipos de oposição reside exatamente na presença ou não da contradição: a oposição lógica é por contradição, a oposição real é sem contradição. Há negação em ambas as oposições, mas de gênero inteiramente diverso. Na contradição, os opostos são negativos em si mesmos (um é o não do outro), ao passo que nos opostos reais um não nega o que é afirmado pelo outro: são positivos ambos os predicados, A e B (ou seja, um não é o contraditório do outro).

Exemplos de oposição real: A - B, Preto/Branco, Subir/Descer, Avançar/Recuar, Dia/Noite etc. Ambos os pólos da oposição são positivos. Não é violado o princípio de não-contradição, que reza: “é impossível que o mesmo atributo, ao mesmo tempo, pertença e não pertença ao mesmo objeto e na mesma relação”; ou, ainda: “é impossível supor que a mesma coisa seja e não seja”.

No caso da oposição lógica (ou dialética), cujo par é A - não-A, um oposto não pode estar sem o outro. Não-A é apenas o negativo de A: em si e por si, não é nada. Para se atribuir algum significado a não-A, é necessário antes saber o que é A, o oposto que é negado; mas este, por sua vez, é a negação de não-A. Assim, os dois pólos da oposição contraditória, por si, não são nada: são ambos negativos, e um implica a relação com o outro, assim como um nega o outro no interior da relação (unidade dos opostos).

O movimento dialético, portanto, é sempre guiado pela negação. No caso de Hegel, o ponto de partida é a Ideia, que é a afirmação ou unidade originária, que depois se cinde, se separa, gerando a sua própria negação. É assim que surge a contradição: afirmação e negação se confrontam e a contradição é, enfim, resolvida (“superada”) através de “negação da negação”, isto é, pelo surgimento de um terceiro (um novo conceito), que restabelece, num nível mais alto, a unidade de que se partiu. E assim sucessivamente, posto que o processo reinicia-se tão logo concluído.

O andamento da dialética foi admiravelmente bem compreendido por Marx, que identifica precisamente na contradição o motor de todo o processo:

Uma vez que a razão chegue a se por como tese, esta tese, este pensamento, oposto a si mesmo, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, o positivo e o negativo, o sim e o não. A luta desses dois elementos antagonísticos, contidos na antítese, constitui o movimento dialético. O sim torna-se não, e o não torna-se ao mesmo tempo não e sim: portanto, os contrários se equilibram, neutralizam-se, paralisam-se. A fusão desses dois pensamentos contraditórios constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Este pensamento desenvolve-se ainda em dois pensamentos contraditórios que se fundem, por sua vez, em uma nova síntese. Deste trabalho de parto nasce um grupo de pensamentos. Este grupo de pensamentos segue o mesmo movimento dialético de uma categoria simples, e tem por antítese um grupo contraditório. Desses dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo de pensamentos que é a sua síntese. (A cruzada contra as ciências, p. 102).

Colletti demonstrou, a partir de uma profunda análise dos textos marxianos, que na obra de Marx os pares trabalho concreto/trabalho abstrato, trabalho privado/trabalho social, valor de uso/valor de troca, mercadoria/dinheiro, trabalho assalariado/capital, não eram simples oposições reais (sem contradição), mas oposições contraditórias. Todas as contradições capitalistas eram de fato para Marx o desenvolvimento da contradição interna à mercadoria entre valor de uso e valor, entre trabalho útil ou individual e trabalho abstrato. A contradição interna à mercadoria se exterioriza na contradição entre mercadoria e dinheiro; a contradição entre mercadoria e dinheiro se desenvolve, por sua vez, na contradição entre capital e trabalho assalariado etc.

Assumindo a realidade como contraditória, Marx introjeta o lógico no ontológico, isto é, seguindo as premissas lógico-filosóficas de Hegel, transfere as contradições lógicas do pensamento para o ser. Assim, forças da natureza ou da sociedade são interpretadas como contradições lógicas, como já percebera Kelsen. A conclusão a que chega Colletti, de modo autônomo e original, é a mesma indicada pelo jurista alemão. Também para Colletti o marxismo cometia um “trágico sincretismo metodológico”, uma confusão entre materialismo (fundado no princípio de não-contradição) e dialética hegeliana (fundada na objetividade real da contradição). Neste quadro, Colletti explicava a tese da polarização da sociedade em duas classes, a extinção do Estado etc.

Todos esses elementos assegurariam a realização do Fim ou Valor da história (uma vez superadas as contradições, que tendiam inevitavelmente à sua resolução), o salto do reino da necessidade ao reino da liberdade  - e, portanto, não somente de uma formação social a outra, mas de uma inferior a uma superior, segundo o bem conhecido desígnio da filosofia da história de Hegel.

Com este desfecho, Colletti não negava a existência de lutas, conflitos, confrontos - até violentos - na realidade, tanto histórica quanto natural. Mas estas são, efetivamente, oposições objetivas, reais - que dispensam o recurso à dialética.

A esta altura, alguém poderia objetar, talvez, que Marx e o marxismo teriam cometido apenas uma impropriedade lógica, designando como contradições o que deveria ser chamado, mais precisamente, de oposições reais. Não seria isso tudo um simples jogo de palavras? Ocorre que o erro não é apenas de forma: não se trata de algo meramente lógico. Quando Marx fala de “contradições do capitalismo”, ele constrói essas antíteses (quanto ao seu conteúdo e à sua estrutura) de modo que possam ser tratadas dialeticamente. Exemplo típico é a oposição entre trabalho assalariado e capital, em que este último é concebido como a objetivação alienada do trabalho humano, de maneira tal que se torna independente ou estranho em relação ao seu criador.

Tem razão Colletti ao afirmar que o tratamento dialético dado por Marx à sua obra “implica que - sob a aparência da explicação causal-científica - o curso real proceda como um desenvolvimento finalístico [...], como é necessário que seja o processo dialético”. Rompe-se assim a separação de fatos e valores estabelecida pelas ciências modernas. A História é chamada a realizar um Valor: o dever-ser já está inscrito no “ser”. Tanto quanto Hegel, Marx concebe o processo histórico como contínuo devir, impulsionado constantemente pela negação ou contradição dialética, progredindo de um estado inferior a um estador superior, até a realização um valor absoluto, que é a meta do processo histórico: a sociedade sem classes, a emancipação completa da humanidade, o comunismo.

Concluo esta exposição - que já se tornou demasiado longa - com a metáfora construída por Norberto Bobbio, outro filósofo italiano, que compara a História a um labirinto. É o contrário do que pensavam Hegel e Marx. É o desfecho, também, da longa pesquisa de Lúcio Colletti, crítico do finalismo marxista:

A história é um labirinto. Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém de lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum (N. Bobbio, 1966).

REFERÊNCIAS

COLLETTI, L. Fine della filosofia e altri saggi. Roma, Ideazione, 1996.
_____. Lezioni tedesche. Con Kant, alla ricerca di un’etica laica. Roma, Liberal Edizione, 2008.
TAMBOSI. O. O declínio do marxismo e a herança hegeliana. Lúcio Colletti e o debate italiano (1945-1991). Florianópolis, Edufsc, 1999.
_____. A cruzada contra as ciências. Quem tem medo do conhecimento? Florianópolis, Edufsc, 2010.

OBS.: todas as citações são retiradas da bibliografia acima mencionada.




14.6.09

A crise é dos jornais - e não do jornalismo

O jornalista e escritor Gay Talese, 77 anos, é uma lenda viva. Como repórter, é autor de perfis memoráveis, e ainda hoje é lembrado pelo texto que escreveu sobre Frank Sinatra, publicado pela revista Esquire em 1966. Como escritor, é autor de onze livros, alguns dos quais marcaram época, como O Reino e o Poder, sobre seu ex-jornal, o The New York Times, e A Mulher do Próximo, uma estupenda reportagem sobre a revolução sexual nos Estados Unidos. Somando o repórter ao escritor, Talese tornou-se um dos mais festejados criadores do "novo jornalismo" – que investiga com as ferramentas de repórter e relata com os recursos literários de escritor. Já ganhou uns 10 milhões de dólares com seus livros e mora numa bela townhouse no elegante East Side de Manhattan. Está escrevendo agora sobre seu casamento de cinquenta anos com Nan, respeitada editora de livros. Em julho, Talese planeja visitar a Festa Literária Internacional de Paraty, para promover Vida de Escritor, lançado há pouco no Brasil, mas nem de longe seu melhor trabalho. Talese recebeu André Petry, correspondente de VEJA em Nova York, em sua casa para uma conversa que se estendeu por quase três horas. A seguir, um resumo.

A LOROTA DO IRAQUE
"A imprensa americana caiu na lorota de que havia armas de destruição em massa no Iraque por algumas razões. Primeira: os atentados de 11 de setembro criaram um clima de espanto. Uma coisa é falar de guerra lá longe, na Normandia, no norte da África, falar do general Erwin Rommel, de Mussolini, Hitler. Outra é sofrer hostilidades de forças estrangeiras dentro de Nova York. Era inacreditável, e George W. Bush capitalizou isso. Ganhou enorme poder. Era o nosso defensor contra futuros ataques e o árbitro sobre o que era bom para nós. Fomos induzidos a acreditar que o governo tinha informações que nem o público nem o Congresso conheciam. A imprensa, muito crédula e um pouco ingênua, entrou no clima. Segunda razão: havia um fervor patriótico. A imprensa se sustenta com publicidade, e o pessoal tinha receio de ser percebido como antipatriótico – o que naqueles dias era o mesmo que ser anti-Bush – e acabar financeiramente punido, com os anunciantes debandando. O comediante Bill Maher fez uma brincadeira em seu programa na rede ABC, dizendo que os terroristas podiam ser chamados de tudo, menos de covardes, e foi retirado do ar. Essa atmosfera durou uns dois anos. Terceira: os jornais, Washington Post, The New York Times, efetivamente acreditavam no governo, e, por último, os repórteres que cobriam Washington eram muito diferentes dos repórteres do meu tempo, que cobriram a Guerra do Vietnã nos anos 60. Não eram céticos."

A NOVA GERAÇÃO
"Os repórteres que estavam em Washington em 2002 não tinham o ceticismo, o estranhamento necessário. Foram educados nas mesmas escolas que o pessoal do governo. Eles vão às mesmas festas que o pessoal do governo. Seus filhos frequentam as mesmas escolas. Todos nadam na mesma piscina, pertencem ao mesmo clube de golfe, vão aos mesmos coquetéis. São repórteres prontos para acreditar no governo. É assim hoje, e era assim em 2002. Os repórteres estavam prontos para acreditar no governo sem pedir provas, evidências, nada. Por pouco, não acusaram Saddam Hussein de ter patrocinado os atentados de 2001. Eram como um bando de pombos para os quais o governo jogava milho. Os repórteres de hoje cobrem a guerra dentro dos tanques das tropas americanas. É ridículo. Um repórter deve prestar contas ao seu jornal, e não ao coronel que está protegendo a sua vida. Num evento público, eu me encontrei com o Arthur Ochs Sulzberger, que hoje dirige o Times, e disse a ele que isso estava errado, que repórteres não podiam trabalhar com militares, mas ele acha que estava certo. Na minha geração, éramos diferentes, éramos de fora, como estrangeiros. Podíamos ter nascido nos EUA, nossos pais podiam ter ido à universidade, mas ainda assim nos sentíamos como estrangeiros. Éramos todos de classe social mais baixa. Éramos judeus, irlandeses, italianos, alguns eram negros. Minha geração não era composta de anglo-saxões que estudaram em Harvard, Yale ou Princeton, que formavam e ainda formam a gente que vai trabalhar no governo ou em Wall Street. No meu tempo, James Reston (1909-1995) era chefe da sucursal do Times em Washington. Reston nasceu na Escócia, mas tinha muito orgulho dos Estados Unidos. Abe Rosenthal (1922-2006) era judeu, nascido no Canadá, seu pai era da Rússia. Meu amigo e o melhor repórter da minha geração, David Halberstam (1934-2007), era judeu, seu pai era um médico militar. Halberstam tinha um senso crítico, um ceticismo notável a respeito deste país. Harrison Salisbury (1908-1993) cobriu a II Guerra e, nos anos 50, foi à União Soviética quando Stalin estava no poder. Salisbury não acreditava em nada. Não acreditava em Stalin, nem em Dwight Eisenhower. Salisbury era como todos nós, de fora. No Vietnã, Salisbury foi para Hanói antes dos soldados americanos para pegar histórias do outro lado. Se Halberstam ou Salisbury estivessem vivos e trabalhando em jornalismo, jamais teriam comprado essa lorota do Iraque. O Times não teria tratado como informação o que era apenas desinformação e propaganda."

A IMPRENSA E O GOVERNO
"O governo usa a imprensa mais do que a imprensa usa o governo. Hoje, devemos ter uns 10 000 repórteres em Washington. Há uma civilização inteira de jornalistas em Washington. Se eu dirigisse um jornal, eliminaria de 50% a 60% da sucursal de Washington e mandaria os repórteres para outros lugares do país, para Califórnia, Nebraska, Flórida. Sabe o que aconteceria? Estaríamos tirando a ênfase sobre o governo e neutralizando sua capacidade de controlar o discurso político. Em vez de ficarmos segurando o microfone para o governo falar, estaríamos trazendo notícia sobre como as decisões do governo são percebidas e como são sentidas longe de Washington. Isso é vida real. É cobrir os efeitos das medidas do governo sobre a economia, a gripe suína, seja o que for, mas longe do governo e perto da sociedade. A multidão em Washington decorre do fato de que as pessoas adoram o poder e ficaram preguiçosas. Jornalista ama o poder, ama lidar com o poder."


OS MALES DA TECNOLOGIA
"Com as novas tecnologias, e sobretudo com a criação da internet, o público hoje é informado de modo mais estreito, mais direcionado. Na internet, os jovens se informam de modo muito objetivo, no mau sentido. Eles têm uma pergunta na cabeça, vão ao Google, pedem a resposta, e pronto. Estão informados sobre o que queriam, mas é um modo linear de pensar e ser informado, que não dá chance ao acaso. Quem está interessado em saber sobre o presidente do Paquistão vai à internet, fica sabendo que ele andou visitando Washington, quem é o seu principal oponente, essas coisas. Quem lê um jornal impresso lê sobre tudo isso e depois, ao virar a página, lê sobre a mulher do Silvio Berlusconi, depois sobre as chinesas que perderam seus filhos naquele terremoto, depois sobre o desastre do Air France que saiu do Rio para Paris. Enfim, lê histórias que não procurou e, por isso, acaba adquirindo um sentido mais amplo do mundo. Claro que você também pode fazer isso na internet, mas o apelo da internet é o oposto. É oferecer informação rápida. A internet é o fast-food da informação. É feita para quem quer atalho, poupar tempo, conclusões rápidas, prontas e empacotadas. Quem se informa pela internet, de modo assim estreito e limitado, pode ser muito bem-sucedido, ganhar muito dinheiro, mas não terá uma visão ampla do mundo. Para piorar, surgiram esses blogs com blogueiros desqualificados, que apenas divulgam fofoca. São como uma torcida num jogo de futebol que fica o tempo todo gritando para os jogadores, para o juiz. É gente que não apura nada, só faz barulho."

O POLITICAMENTE CORRETO
"O politicamente correto é um veneno para o jornalismo. Em 2006, aconteceu um caso exemplar. Na Carolina do Norte, uma mulher foi contratada para dançar numa festa dos jogadores do time de lacrosse da Universidade Duke e disse que bebeu demais e acabou estuprada por três jogadores. O caso ganhou as primeiras páginas. Os jornais nunca publicaram o nome da moça, e divulgaram fartamente o nome dos rapazes acusados do estupro. Ela era negra. Eles eram brancos. No fim, descobriu-se que ela era uma mentirosa. Os jornais, o Times inclusive, protegeram a mentirosa e expuseram os inocentes. Por que o Times fez isso? Porque queria ser sensível à situação de uma afro-americana. Jayson Blair, que publicou várias mentiras como repórter do Times, é outro exemplo. Ele foi contratado porque o jornal queria ter mais representantes das minorias, e Blair era negro. Foi contratado por Gerald Boyd, o primeiro negro a chefiar a redação do Times. Acima dele estava apenas o diretor de redação, Howell Raines, um branco do sul. Boyd e Raines queriam ser politicamente corretos e contrataram Blair porque era negro. E, porque era negro, faziam vistas grossas para os seus erros, deixavam passar, até que a coisa estourou. Só foram tolerantes com os erros de Blair porque queriam ser politicamente corretos. No jornalismo, isso não funciona. O jornalismo tem de ser vigilante, justo, realista, disciplinado, e não se preocupar em ser ou parecer politicamente correto."

O FUTURO DO JORNALISMO
"A crise dos jornais americanos não é uma crise do jornalismo americano. Moro em Nova York há cinquenta anos. Já vi muitos jornais fechar as portas. Nos anos 60, acabou o The New York Herald Tribune, que era um grande jornal, mas grande mesmo. Antes, fechou o tabloide New York Daily Mirror. Eu cresci lendo revistas como Life, Saturday Evening Post, Look, e nenhuma delas existe mais. Em Nova York havia quinze jornais. Quando cheguei aqui, em 1959, eram sete. As pessoas esquecem que os jornais vão e vêm. O jornalismo, não. As pessoas vão sempre precisar de notícia e informação. Sem informação não se administra um negócio, não se vende ingresso para o teatro, não se divulga uma política externa. Todos os dias, nos jornais das cidades grandes ou pequenas, repórteres vão à rua para fazer o que não é feito por mais ninguém. De todas as profissões, se um jovem estiver interessado em honestidade e não estiver interessado em ganhar muito dinheiro, eu aconselharia o jornalismo, que lida com a verdade e tenta disseminar a verdade. Há mentirosos em todas as profissões, inclusive no jornalismo, mas nós não os protegemos. Os militares acobertam mentirosos. Os políticos, os partidos, o governo, todos fazem isso. O escândalo do Watergate é uma crônica de acobertamento. Os jornalistas não agem assim, não toleram o mentiroso entre eles. Acho uma profissão honrosa, honesta. Tenho orgulho de ser jornalista."
(Revista Veja, edição de 17 de junho de 2009)

13.4.09

Tudo pelo racial

O Brasil está fazendo o possível, nestes últimos tempos, para dar a si próprio algo que até hoje conseguiu não ter: um problema racial. Se tantos outros países importantes têm questões sérias de racismo, por que o Brasil também não poderia ter a sua? Parece um motivo de desapontamento, na visão das pessoas que foram nomeadas pelo governo para defender os interesses da "população negra", ou nomearam a si mesmas para essa tarefa, que o Brasil seja possivelmente o país menos racista do mundo. Que outros poderiam ser citados? Certamente haverá nações que têm um número maior de leis contra a discriminação, são mais sérias na sua aplicação e adotam medidas de proteção especial a minorias raciais. Mas não dá para sustentar, não a sério, que haja mais racismo no Brasil do que em qualquer delas. Como poderia haver, num país onde a grande maioria da população não sabe dizer ao certo qual é a sua cor, nem demonstra maior interesse em saber? "Moreno" é a sugestão de resposta mais frequente, quando a pergunta é feita para a imensa massa de brasileiros que não se identificam claramente como brancos, nem pretos, nem qualquer outra coisa.

Criar um racismo que se preze, num país assim, não é trabalho fácil – mas é possível. Uma das ferramentas mais utilizadas para isso é distribuir aos "brancos" uma espécie de culpa geral por tudo o que ocorre de errado aqui dentro. Não se citam nomes; só se cita a cor da pele. Tornou-se comum, por exemplo, o uso da expressão "elite branca" como símbolo de coisa do mal – com a agravante, em certos casos, de que essa elite, além de branca, pode ser "do sul". A mesma gente, de "pele clara e olhos azuis", é culpada também pelo que ocorre de errado lá fora, como a crise financeira internacional; por essa maneira de ver a vida, os desastres que produziram foram provocados por seu tipo físico, e não pelo seu comportamento individual. Outro esforço é criar repartições públicas para cuidar da questão racial – o que tem a tripla vantagem de dar uma cara oficial à existência do problema, passar a impressão de que o governo está cuidando dele e arrumar empregos para amigos. A mais notável delas é um órgão com nove palavras no título e status de ministério – a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Seu grande feito, em seis anos de existência, foi a demissão da secretária-ministra Matilde Ribeiro, em 2008, quando se descobriu que ela usava o cartão de crédito destinado ao exercício de sua função para pagar despesas de free shop ou contas no Bar Amarelinho, no Rio de Janeiro.

Nada parece pior, porém, do que a tentativa de estabelecer por lei que cidadãos devem ter direitos diferentes de acordo com a cor de sua pele, como preveem os projetos de "cotas raciais" ora em debate no Congresso Nacional – pelos quais os brasileiros negros, ou definidos como tal, deveriam ter mais direitos que os brasileiros brancos, ou de outras origens, no mercado de trabalho, nas vagas universitárias ou nos concursos para cargos públicos. É o contrário, exatamente, do que deveria ser. A grande vitória da humanidade contra a discriminação racial foi excluir das leis a palavra "raça"; o objetivo era estabelecer que todos têm direitos idênticos, sejam quais forem as suas origens, dentro da ideia de que todos os homens pertencem a uma "raça" apenas – a raça humana. No Brasil de hoje, em vez de proibir o uso da noção de raça para dar ou negar direitos, tenta-se ressuscitar a tese de que os indivíduos são diferentes uns dos outros, em termos de cidadania, segundo a cor que têm.

"Os defensores de leis raciais ludibriam a boa-fé alegando que cota racial é ação afirmativa", escreveu, num artigo para O Estado de S. Paulo, o advogado negro José Roberto Militão, um especialista em antidiscriminação na OAB de São Paulo. "Ação afirmativa", de fato, é outra coisa: é a efetiva atuação da autoridade para coibir a discriminação contra minorias e multiplicar oportunidades, sem criar cotas, exigir reparações pelo passado ou estabelecer diferenças de direitos. "Ao estado cabe atuar para destruir a crença em raças", diz Militão. "Leis raciais não servem para a redução das desigualdades entre brancos e pretos, pois atacam os efeitos, mas aprofundam as causas." São, além disso, o oposto da harmonia: como se sabe, nada é mais fácil do que passar da distinção à divisão.
(José Roberto Guzzo, revista Veja de 15/04/2009).

18.3.09

Incoerência católica

Artigo do Dr. Dráuzio Varella, publicado na Folha de S. Paulo (14 de março de 2009).
Os males que a igreja causa
em nome de Deus vão muito
além da excomunhão de médicos.

AOS COLEGAS de Pernambuco responsáveis pelo abortamento na menina de nove anos, quero dar os parabéns. Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina.
Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos.
Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: "Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus", não é o que pregam?
É uma cosmovisão antagônica à da medicina. Nenhum de nós daria tal conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna. Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo.
Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios que a regem desde os tempos da Inquisição.
Se os católicos consideram o embrião sagrado, já que a alma se instalaria no instante em que o espermatozoide se esgueira entre os poros da membrana que reveste o óvulo, como podem estranhar que um prelado reaja com agressividade contra a interrupção de uma gravidez, ainda que a vida da mãe estuprada corra perigo extremo?
O arcebispo de Olinda e Recife não cometeu nenhum disparate, agiu em obediência estrita ao Código Penal do Direito Canônico: o cânon 1398 prescreve a excomunhão automática em caso de abortamento.
Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos, perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos?
Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores.
Em nota à imprensa a respeito do episódio, afirmou Gianfranco Grieco, chefe do Conselho do Vaticano para a Família: "A igreja não pode nunca trair sua posição, que é a de defender a vida, da concepção até seu término natural, mesmo diante de um drama humano tão forte, como o da violência contra uma menina".
Por que não dizer a esse senhor que tal justificativa ofende a inteligência humana: defender a vida da concepção até a morte? Não seja descarado, senhor Grieco, as cadeias estão lotadas de bandidos cruéis e de assassinos da pior espécie que contam com a complacência piedosa da instituição à qual o senhor pertence.
Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa.
A esperança de que a instituição um dia adote posturas condizentes com os apelos sociais é vã; a modernização não virá. É ingenuidade esperar por ela.
Os males que a igreja causa à sociedade em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos, medida arbitrária de impacto desprezível. O verdadeiro perigo está em sua vocação secular para apoderar-se da maquinária do Estado, por meio do poder intimidatório exercido sobre nossos dirigentes.
Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniões cautelosas apenas o presidente da República e o ministro da Saúde.
Os políticos não ousam afrontar a igreja. O poder dos religiosos não é consequência do conforto espiritual oferecido a seus rebanhos nem de filosofias transcendentais sobre os desígnios do céu e da terra, ele deriva da coação exercida sobre os políticos.
Quando a igreja condena a camisinha, o aborto, a pílula, as pesquisas com células-tronco ou o divórcio, não se limita a aconselhar os católicos a segui-la, instituição autoritária que é, mobiliza sua força política desproporcional para impor proibições a todos nós.